O indesejado chega à porta


Duas semanas atrás, conversando sobre o coronavirus com uma amiga e enfermeira, que está na linha de frente dos atendimentos, ela me disse algo como: "Ah, João, a gente fica preocupado, mesmo. Esse vírus que a gente não conhece, não sabe de onde veio e para onde vai, não sabemos o que esperar ou o que prever".





Ambos trabalhamos com ISTs, em especial o HIV e a fala dela me fez lembrar (não do que vivi, mas do que li) sobre o aparecimento da Aids, na década de 1980. Também era um vírus novo, desconhecido, que assustava e que delimitou estigmas, preconceitos, discriminação. Assim como fizeram com os "4H"s (homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroin addicts), fizeram com o Sars-Cov2, ao associá-lo aos orientais, aos que fazem viagem ao exterior e, mais recentemente, a qualquer pessoa sintomática ou que testou positivo.





Real ou de forma imaginada, estas pessoas presentificam e corporificam, para alguns, a doença, a possibilidade de ter contato e se infectar com o vírus. Enquanto a gente não vê, o vírus permanece no lugar que a gente reservou para ele: o de suposta inexistência. Agora, quando o vírus está nas maçanetas, na fala, no abraço, no toque, no nosso amigo, ele se impõe e está presente.





Tudo isso para pensar sobre o que temos, em termos psicológicos, priorizado em nossas consciências: a valorização e a busca unilateral da e pela vida, da saúde, do bem-estar. Por outro lado, não há espaço para a doença, o mal-estar e a morte na consciência, na forma como iremos lidar diariamente com nossas vidas. Esquecemos que até mesmo estes aspectos fazem parte e são, também, vida.





Em nossas vivências com qualquer possibilidade de perda de controle, de idealizações, sonhos, o que passa pelas nossas cabeças quase sempre quando nos vemos com alguma doença ou com a possibilidade de virmos a adoecer, muitas vezes tudo o que esteve em nosso campo de vista até o momento entra "em suspenso" e há lugar para que muito do que (assim como a doença, o mal-estar e a morte) deixamos no mais profundo de nossos baús psíquicos também encontrem um espaço para se manifestar.





Assim como Caronte, o barqueiro que nos leva ao Hades quando não há mais espaço ou possibilidades para nós na consciência, a doença traz em seu barco outros habitantes de nosso Hades particular e, no caso de pandemias, também coletivo.





Justamente neste momento em que seria preciso um ombro, um abraço, um carinho e um conforto, não podemos ter, com vistas a nos proteger e proteger os nossos, mas com tantos conteúdos angustiantes emergindo, a ausência física não pode e nem deve ser pretexto para nos sentirmos e mantermos sozinhos. A doença, ali, nos outros, ou em nós, nos põe frágeis, impotentes, com receio do que está no porvir. Não acolher, dar lugar e respeitar esta fragilidade, antes de mais nada é também uma forma de violência consigo mesmo.





Que tal se, ao ouvirmos as batidas em nossa porta, ao invés de apagar as luzes e fingir que não há ninguém, a gente acenda o fogo, esquente uma água, passe um café, faça um bolo, deite sem hora para levantar, retome uma leitura, assista filmes despretensiosos, revisite aquela caixa com recordações do passado e deixe entrar o que há tanto tempo não tem tido espaço para nos visitar?





Fiquemos acompanhados, de nós, do que gostamos e de quem pode cuidar da gente nesse momento de fragilidade.


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