E lá se foram 40 anos




1981: o ano em que surge (ou ao menos, que se tem registro) o primeiro caso de aids. O "paciente zero",  um homem homossexual que apresentava lesões de Sarcoma de Kaposi, talvez marque o que se pensa ainda hoje, de maneira equivocada, a respeito do HIV.  Em 2016, um estudo aponta que na verdade o vírus já circulava desde a década de 70, e que nem de longe seria esse homem o primeiro caso de aids. 

De lá para cá, acompanhamos na mídia, muitas vezes sensacionalista, o desenrolar da epidemia de HIV. "Sexo seguro" era falado nos primeiros anos, também sobre os "grupos" e "comportamentos de risco" foram disseminados e a ideia de "sentença de morte", em especial para as pessoas que, assim como o homem citado acima não correspondem à norma cisgênero e heterossexual, como um fantasma. "Vítima da aids, Cazuza agoniza em praça pública", publicou a Revista Veja. Quem acompanhou a banda britânica Queen, e a Legião Urbana brasileira, acompanhou também o que se passou com Freddie Mercury e Renato Russo, outras "vítimas da aids". E essa imagem ficou nas nossas cabeças. 

A professora de biologia, na escola, quando não vinha de um lar "de bem" e condenava o amor entre pessoas no mesmo sexo, "educava" a partir do medo e do terror. Aqui, quero compartilhar um pouco de minha experiência. Não me recordo de, em momento algum, ter tido algo além de uma aula breve, assustadora e ouvir falar sobre a aids em algum lugar, em especial na minha adolescência. Mas eu não vivi o que meus pais, jovens em 1980, viveram com o surgimento da aids. Mesmo assim, eu, um homem gay, já naquele momento pensava que a aids seria o meu fim (como pensam, erroneamente, muitos outros homens gays e bissexuais ou mulheres trans e travestis).

Mas o que era visto como uma "sentença" e certeza de morte, os diversos efeitos colaterais dos diversos medicamentos por dia, que a gente pode ver no filme Clube de Compras Dallas, apesar de terem durado longos anos, passou. Em 1995, descobre-se que associar três drogas agindo em momentos diferentes da replicação viral conseguiria fazer com que o HIV não pudesse se replicar, o que ocasiona a diminuição de vírus circulando no sangue. Até então, inclusive pelos efeitos colaterais, o tratamento medicamentoso só se iniciava quando a pessoa adoecia de aids ou tinha uma contagem de CD4 (células de defesa) abaixo de determinado número. 

Em 2013, o governo brasileiro institui a política "testar e tratar", e em 2017 o Estado de São Paulo passa a reconhecer que pessoas que vivem com HIV, estão em tratamento e mantém a carga viral indetectável não apenas não adoecem de aids (o que já era sabido), mas também não transmitem HIV para seus parceiros sexuais ou durante a gestação e parto. É também neste período que estão em implementação políticas de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) que, com o uso de um comprimido diário, tem sido importante ferramenta para enfrentamento de novos casos de infecções pelo HIV. 

Vejam, toda essa breve linha do tempo, em especial o que vem ocorrendo na última década, nos mostra que, sim, hoje é plenamente possível viver com HIV sem nunca desenvolver aids, assim como também nossas formas de prevenção são muitas e podemos escolher a que melhor se adapta ao estilo de vida de cada um. Nos mostra que temos ciência e avanços biomédicos na direção de garantir boa qualidade de vida a quem vive com HIV. 

Mas o que fazemos pelas pessoas que, assim como eu, tiveram as aulas de terror? O que podemos fazer pelo homem que se relaciona com homens e que, por isso, acredita que será mais uma pessoa a morrer de aids? Ou então, o que faremos para acolher a pessoa que vive com HIV e que tem como pano de fundo todos esses medos, culpa, vergonha? 

Trabalho em consultório e na saúde pública. Na saúde pública, também como psicólogo clínico. Convivo com pessoas que vivem com HIV e pessoas que fazem uso da PrEP. Convivo com pessoas que escolhem apenas conversar sobre prevenção com seus parceires, e não usam nenhuma estratégia de prevenção dessas que comentei. E em todos esses espaços, o que vejo, é a invisibilização da pessoa que vive com HIV. 

Do ponto de vista de saúde pública e enfrentamento à epidemia de HIV/aids, lançar mão do discurso de que há PEP, PrEP, I=I, uso de preservativos, prevenção combinada, é importantíssimo e necessário. Mas e do ponto de vista individual? Toda estratégia serve para todo mundo lidar com alguma coisa?

Levando-se em conta o que compreendo na psicologia junguiana como sombra, sempre que algo avança na consciência, numa direção, no inconsciente e na vida psíquica, também há um movimento, na direção oposta e em igual intensidade. Enquanto falamos de indetectável para a contagem de vírus numa gota de sangue e colocamos como a única saída para a pessoa que está em nossa frente em nossos consultórios, e reforçamos veementemente que "agora que você está indetectável, você não transmite o vírus para seus parceiros" ou "quando você estiver indetectável, poderá inclusive deixar de usar a camisinha" indetectamos a subjetividade (é o vírus que fica indetectável, não a pessoa), os pensamentos, as crenças, os sentimentos, os afetos que a vivência individual provocam. Sem perceber, podemos acabar dizendo "nas entrelinhas" que a responsabilidade ou a culpa pela saúde do outro recai exclusivamente no tratamento da pessoa que vive com HIV. 

Penso que o grande desafio da epidemia de HIV/aids recentemente seja justamente esse: termos claro que para que a pessoa possa ter sua carga viral indetectável no exame quantitativo, ela, a pessoa e sua subjetividade não podem estar indetectáveis. 

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